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Entrevista a Henrique Leitão a propósito de Pedro Nunes

Entrevista pubicada no Jornal de Mathemática Elementar 279

Publicação do De arte atque ratione navigandi de Pedro Nunes, vol. IV da edição da Academia das Ciências.

Um momento singular nos estudos de história da ciência portuguesa

 

 

O Jornal de Mathemática Elementar entrevistou Henrique Leitão, investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, Pólo da Universidade de Lisboa, e Coordenador da Comissão Científica encarregue da publicação das Obras de Pedro Nunes, pela Academia das Ciências de Lisboa.

 

 

Jorge Nuno Silva (JNS): Foi publicado há alguns meses o vol. IV da edição das Obras de Pedro Nunes, de título De arte atque ratione navigandi, que é geralmente considerada a mais importante obra de Nunes. Podes dizer-nos alguma coisa acerca disso?

 

Henrique Leitão (HL): O De arte atque ratione navigandi [Sobre a arte e a ciência de navegar] é habitualmente considerado o mais importante livro de Pedro Nunes, e por isso também muito possivelmente o mais importante livro da ciência portuguesa. É uma obra notável, que aguardava há muitos anos, na verdade há muitas décadas, uma edição moderna, com tradução e notas, como a que foi agora apresentada.

 

JNS: Por que é que este livro demorou tanto tempo – várias décadas – a ser publicado?

 

HL: Porque levar a cabo uma publicação deste género é um empreendimento muito especial, que exige a conjunção feliz de vários factores, uma conjunção que raramente se dá.

 

JNS: Quais factores?

 

HL: Bem, para começar, um trabalho deste tipo, como é a edição de obras matemáticas do século XVI, só pode ser empreendido devido a um enquadramento institucional único. Por um lado a Fundação Calouste Gulbenkian, que desde a primeira hora e ao mais alto nível (através de vários administradores e directores, mas sobretudo o Prof. Diogo de Lucena) se empenhou nesta iniciativa, financiando-a, acompanhando-a, e removendo todas as dificuldades que sempre surgem em projectos deste tipo. Por outro lado, porque a Academia das Ciências de Lisboa se acometeu a este projecto com toda a decisão. Quem chefia a edição é um distinto académico e matemático, o Prof. Fernando Dias Agudo, sem a liderança do qual pouco ou nada teria sido possível fazer. É bom que todos saibam que Portugal contraiu uma dívida enorme para com estas duas pessoas, porque sem eles seguramente não haveria edição moderna das obras de Nunes.

Depois do enquadramento institucional era preciso que existisse a competência técnica e científica para o fazer. E sobre isto o que tenho a dizer é que sou o coordenador da Comissão Científica, e tem sido para mim um prazer e uma honra, e mais que tudo, uma contínua aprendizagem, trabalhar com o notável grupo de especialistas que constituem a Comissão Científica, que além de muito competentes nos seus campos têm sabido manter um espírito de entreajuda e uma dedicação ao trabalho incansáveis.

 

JNS. Quer dizer que no passado não houve esta conjunção.

 

HL. Sim, acho quase nunca a houve. Parece-me que em tentativas anteriores às vezes havia dinheiro e interesse das instituições, mas não havia talento nem “know-how”; outras vezes havia o saber, mas não existiam os recursos materiais. Não se deve minimizar a dificuldade de uma edição destas. Contam-se pelos dedos das mãos os países que têm instituições e pessoas com a capacidade, a determinação, e o saber para se acometerem a empreendimentos deste tipo.

 

JNS: O aparecimento desta obra teve algum impacto fora de Portugal?

 

HL: Bem, é preciso ver que se trata de um livro muito técnico, de acesso difícil, e para mais está em latim com tradução portuguesa. Portanto, uma obra para especialistas. Dito isto, sim, os especialistas estrangeiros que conhecem a obra estão muito satisfeitos com o seu aparecimento. Mas o principal nem sequer é isso. O principal é que Pedro Nunes se tornou num objecto de estudo fora de Portugal. Há historiadores estrangeiros a trabalhar sobre a sua obra, há congressos internacionais, etc.

 

JNS: E em Portugal, qual tem sido a reacção à publicação do livro?

 

HL: Tem sido muito bem recebido, diria eu. Não só os especialistas e os colegas se têm mostrado muito interessados, mas também os meios de comunicação perceberam que se tratava de uma ocasião muito especial. Devo dizer que só tive umas raras decepções, de pessoas que passaram anos a lamentar-se de que este livro não existia e agora não tiveram qualquer palavra (nem de elogio, nem de crítica, nem de comentário) para saudar o seu aparecimento. Mas isso foram excepções. Em geral o livro tem sido muito bem recebido.

 

JNS: Podes dar-nos uma ideia do conteúdo do livro e por que é que é tão importante?

 

HL: Isso é quase impossível! É tanta coisa. Repara: é a obra-prima de um matemático que era muito criativo e que juntou o melhor que tinha feito num só livro…Mas, bem, vou tentar. No livro está a melhor análise e crítica dos problemas técnicos com que se debatia a cartografia do século XVI e a proposta (revolucionária) da projecção em latitudes crescidas; estão lançadas as bases da navegação teórica, com a apresentação detalhada dos princípios matemáticos dessa nova disciplina; está um estudo matemático da curva loxodrómica, a primeira curva com um ponto assimptótico no espaço real conhecida na história da matemática; está a proposta de novos instrumentos e procedimentos náuticos; está a primeira explicação matemática da história do relógio de Acaz; está a identificação de um conjunto de erros matemáticos no livro de Copérnico; está a mais importante análise do problema dos barcos a remos publicada entre Aristóteles e Euler, etc. etc. Não conheço nenhum outro livro científico de autoria portuguesa que se lhe aproxime em criatividade, brilhantismo e impacto.

 

JNS: Sabemos que foste o coordenador de uma equipa que trabalhou na publicação deste livro, mas toda a gente está sobretudo impressionada com tuas anotações, quase 300 páginas de notas e comentários pormenorizados e eruditos. Uma coisa de uma dimensão e uma profundidade muito invulgar entre o que é habitual ver-se feito pelos historiadores nacionais.

HL: O que se passa é que o livro é muitíssimo importante, mas não é de leitura fácil. Imediatamente me dei conta que para tornar o livro minimamente acessível era preciso explicar muitas coisas ao leitor, identificando fontes, fornecendo algum contexto, esclarecendo as múltiplas pistas de influência do texto, etc. Como o livro é extenso, isso acabou por traduzir-se em muitas notas. Mas gostava de sublinhar o essencial: são apenas Notas; não são os estudos pormenorizados que o livro ainda precisa e que agora se espera (melhor: se reclama) que os historiadores venham a fazer. Se eu tivesse que produzir estudos detalhados de tudo o que está no livro, 300 páginas não chegavam; seriam precisas 3000…

 

JNS: Há cerca de dois anos foste eleito para a Académie Internationle d’Histoire des Sciences, uma distinção muito rara. És o único historiador da ciência português actualmente membro. Isso teve a ver com o teu trabalho com este livro?

 

HL: Talvez não directamente com este livro, mas penso que com toda a edição das obras de Pedro Nunes, sim. Espero que a partir de agora se venham a eleger mais portugueses – por exemplo, especialistas em jogos matemáticos que fazem no nosso país uma investigação única no mundo!

 

JNS: Este é um momento singular para os estudos da história científica portuguesa.

 

HL. Sim, e embora eu seja parte directamente interessada, acho que consigo ser suficientemente frio e distante para julgar correctamente. E confirmo: sim, a publicação do vol IV das Obras de Pedro Nunes, o mais importante texto da nossa história científica, é certamente um momento especial nos estudos de história da ciência portuguesa.

 

JNS: E depois disto? O que vais fazer?

 

HL: Bom, tenho vários outros projectos “em carteira”, porque houve muitas coisas interessantes na história da matemática portuguesa que ainda estão completamente por contar. Há muitas obras e mesmo muitos matemáticos que ainda estão completamente inéditos. Talvez não exista nada com o nível de Pedro Nunes, mas é preciso nunca esquecer que as pessoas que habitualmente dizem que “não houve nada” na história científica do nosso país, não o dizem em resultado do seu estudo, mas simplesmente porque têm algum interesse (ideológico, político, etc.) investido na manutenção dessa ideia. Há muito ainda para contar. Uma coisa é certa: o Jornal de Mathemática Elementar será sempre o primeiro a saber as novidades!

 

JNS. Toma atenção, a promessa fica registada!!

 

 

 

Criado por jnsilva
Última modificação 2009-11-05 11:25
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