Bernardo Mota ganha prémio internacional
Bernardo Mota, do Centro de História das Ciências da Universidade de Lisboa, ganhou o Prémio «Jeune Historien» da Académie Internationale d'Histoire des Sciences do ano de 2009, pela sua tese de doutoramento «O estatuto das matemáticas em Portugal nos séculos XVI e XVII».
O prémio, a mais alta distinção internacional concedida a uma tese em história da ciência, foi entregue numa cerimónia pública em Budapeste, no passado mês de Julho. No relatório de um dos proponentes do prémio (Paolo Mancosu, U. C. Berkeley, EUA), pode ler-se: "Mota’s achievement is outstanding. It is a major contribution to the history of the philosophy of mathematics; to the institutional history of mathematics and philosophy, especially (but not only) in Portugal; and to the institutional history of the Jesuits".
Mota apresentou publicamente o seu doutoramento em Junho de 2008. Foram seus orientadores Henrique Leitão (sócio-fundador da Associação Ludus), do Centro de História das Ciências da UL, e Arnaldo Espírito Santo da Faculdade de Letras da UL. É a primeira vez que um português é homenageado com esta distinção.
Chegámos à fala com o premiado. Tínhamos alguma curiosidade sobre tão impressionante feito…
Jorge Nuno Silva (JNS): Parabéns! Diz-me: de que trata a tua tese?
Bernardo Mota (BM): A tese estuda a evolução de um antigo debate sobre o estatuto epistemológico das ciências matemáticas e a sua relação com os outros ramos do conhecimento humano. Esta discussão, que assentava numa análise contrastiva entre a teoria da ciência aristotélica e a geometria euclidiana, já vem da Antiguidade Clássica, acabando por ser introduzida nos currículos de filosofia das principais universidades europeias durante a Idade Média.
Mais tarde, foi retomada no século XVI, com novo vigor e sob uma nova perspectiva renascentista. O debate ficou conhecido como a Quaestio de certitudine mathematicarum e enquadrou o processo de revisão da filosofia aristotélica e a construção da moderna cultura científica ocidental.
A tese pretende ilustrar como, ao contrário do que pensamos usualmente, a ciência moderna é o culminar de um processo iniciado na antiguidade clássica e que o conhecimento científico moderno não nasceu da oposição revolucionária a ou da negação das ideias dos autores antigos ou medievais. A ciência moderna é antes o natural desenvolvimento da especulação daqueles.
O meu trabalho procura reinterpretar a ideia que os especialistas tinham do debate histórico sobre o estatuto científico da matemática e determinar o contributo dos autores nacionais para o debate (realçando a significativa contribuição para a discussão a nível nacional e a nível internacional por parte dos Jesuítas portugueses).
JNS: Como surgiu o tema?
BM: O tema tinha de incluir estudo de tópicos usualmente integrados no corpo de saberes a que chamamos ciências puras e outros integrados na área das humanidades. Tinha de ser um tema “de ponta” meio trabalhado, ou seja, o trabalho tinha de estar relacionado um tópico unanimemente reconhecido como fundamental na história da ciência, mas para o qual não havia tratamento compreensivo e diacrónico.
Tinha de ser um tema universal, mas em que a cultura portuguesa estivesse presente de forma tão peculiarmente interventiva que inflectisse de alguma forma a evolução da cultura europeia. Outra condição era o tema interessar a pessoas de muitas áreas diferentes (filosofia, história da ciência, estudos clássicos, matemática, história da educação, etc.).
JNS: Que dificuldades particulares apresentou?
BM: As principais dificuldades foram trabalhar com fontes tão diversas (textos em Grego e Latim), de épocas tão diversas (antiguidade clássica, época medieval, renascimento, séculos da chamada Revolução Científica); com textos manuscritos às vezes quase impossíveis de ler e de áreas tão diferentes (matemática: Euclides, p.e.; filosofia: Aristóteles, p.e.).
JNS: Como foi o trabalho com os teus orientadores?
BM: Óptimo. Fundamental o orientador estar tão envolvido na matéria a tratar quanto o orientando. Muito importante uma relação de trabalho muito próxima.
O meu orientador de História da Ciência (Henrique Leitão) tive um período inicial com trabalho tutorial muito intenso (às vezes mais que uma reunião por semana) e muitos emails trocados diariamente (isso mesmo: diariamente). Foi ele quem me passou a maior parte da bibliografia fundamental ao longo destas reuniões, nem sequer a tive de procurar por mim. Muito relevante também integrar projecto(s) dirigidos pelo(s) orientador(es). Fica mais fácil trabalhar em diversas frentes ao mesmo tempo. O meu orientador da área de Estudos Clássicos foi sempre uma bóia de salvação para o Latim, o Grego e para a Cultura Clássica.
Regra número um: é preciso perceber ritmos e modos de trabalho dos orientadores (é preciso que tanto quem orienta como quem é orientado puxe a carroça ao mesmo tempo); regra número 2: é preciso exigir sempre mais do orientador do que aquilo que nos é exigido por ele, o que nem sempre é fácil; regra número 3: aconselho vivamente a escolha de orientadores pluridisciplinares, com formação vasta e diversificada, entusiasmados e plenos de juventude intelectual.
JNS: Tu tens formação e profissão ligadas à Faculdade de Letras. Como é que uma pessoa como tu faz uma tese num assunto destes?
BM: Não aceitando a tradicional separação entre letras e ciências a que a escola nos habitua, forçando sempre uma formação forte nas vertentes de cultura e ciência, lutando por uma unidade dos saberes que convencionámos não existir.
Falámos também com Henrique Leitão, que não esconde o orgulho no trabalho do Bernardo.
JNS: As palavras de Mancosu impressionam: “Mota’s achievement is outstanding. It is a major contribution to the history of the philosophy of mathematics… One is struck in such a young scholar by the depth of the analysis as well as by the vision of synthesis displayed in the dissertation…”. Sei que trabalharam com grande entendimento. O que gostavas de salientar no trabalho do Bernardo?
Henrique Leitão (HL): Acerca deste trabalho e do importante prémio internacional que recebeu, em primeiro lugar, como é evidente, gostava de dar os parabéns ao autor e desejar-lhe boa sorte para o futuro. Espero que esta tenha sido apenas a primeira de muitas boas notícias que ainda vamos receber do Bernardo Mota.
Mas importa observar o seguinte: trata-se de uma tese escrita em português e sobre um tema essencialmente português. Porém, nada disso foi obstáculo a que recebesse a mais alta distinção internacional para uma tese em história da ciência. Ou seja: a qualidade do conteúdo é tudo e não há razão para pensar que um trabalho só porque versa algum aspecto da história científica portuguesa tenha menos interesse internacional.
JNS: Sobre a relevância do tema versado, o que nos podes dizer?
HL: O tema desta dissertação prende-se com discussões culturais e científicas ocorridas em Portugal durante o século XVII --- talvez o século mais mal conhecido da nossa história intelectual. Como se sabe, uma certa historiografia eliminou de cena, a priori, alguns dos acontecimentos mais interessantes da nossa história científica.
É evidente para todos os historiadores de ciência que uma das tarefas mais importantes hoje em dia consiste em ultrapassar esses espartilhos, que tantas vezes paralisaram historiadores de outras gerações, olhando para a nossa história científica e cultural sem baias nem preconceitos. Há ainda muito à espera de ser estudado (e premiado!, esperamos todos nós) por quem tenha o talento, a determinação e a liberdade de espírito para o fazer.
JNS: O Bernardo Mota evidenciou grande virtuosismo e versatilidade intelectual ao abordar assunto tão complexo...
HL: Esta dissertação relembra uma verdade incontornável: a história da ciência é uma disciplina difícil que exige uma preparação especial e muito exigente para ser praticada. No caso deste trabalho, sem conhecimentos avançados de latim, de grego, de matemática, de história intelectual, de filosofia, etc., nem sequer se poderia ter começado a investigação.
Os investigadores (como o Bernardo Mota) que reúnem estas capacidades e talentos são sempre raros e por isso nada é mais importante do que detectá-los, treiná-los e estimulá-los.
JNS: Este prémio reflecte a existência de historiadores da ciência de qualidade em Portugal, ou trata-se simplesmente de um caso isolado?
HL: Bernardo Mota foi o primeiro português a receber o famoso «Prix Jeune Historien» da Académie Internationale d'Histoire des Sciences. Fica absolutamente claro que em Portugal há pessoas e grupos de investigação a trabalhar em história da ciência ao mais alto nível internacional.